Vale Tudo mostra que o pior capítulo é sempre o próximo.
Ok, é brincadeira. Eu tenho gostado muito de assistir ao folhetim! Depois de mais de dez anos sem acompanhar uma telenovela, Vale Tudo me fez vestir a skin noveleiro outra vez. E agora, caminhando para dois meses de exibição, podemos perceber os bons e os maus passos da dramaturgia se estudarmos a obra com um olhar atento.
Eu sou Jack, eu saí do Picolé de Limão para fundar minha própria emissora, o Picolé de Chuchu – e eu estou aqui hoje para comentar sobre novela. Afinal, novela é cultura, novela é pop, e novela é arte. E toda arte sob o Sol será criticada por mim. Mas mesmo se você já trocou a Globo pela Globe e não assiste mais novelas, continue lendo e venha refletir um pouco sobre adaptação, construção de personagens e escrita comigo.
Quanto maior o topete, maior a queda
O maior problema de Vale Tudo tem sido a caracterização dos personagens. Os grandes acertos vêm mais da construção dos atores do que de qualquer intenção do roteiro ou da direção dessa novela.
Vamos começar por um dos maiores êxitos, que trouxe também um leque de problemas. A Odete Roitman de 2025 entrou para o imaginário brasileiro como uma grandisíssima loba. Logo depois de uma chegada um tanto truncada pelas limitações da produção, Débora Bloch encontrou uma Odete vivaz, pérfida e carismática que tem conquistado o país – a glamourização do mau-caratismo é um pouco duvidosa para mim, mas esse é um tópico para outra edição. O que eu posso dizer com certeza é que todo o sucesso da personagem é mérito da atriz, com seu charme, sua experiência, e sua visão da personagem.
Antes de prosseguir, eu quero tirar um momento rápido para destacar as pronúncias afiadas que a Débora trouxe para os nomes "Roitman" e "Duprat". Afinal, para uma personagem que preza tanto pelo estrangeiro acima do brasileiro, faz todo o sentido ela ser a única do elenco a não abrasileirar as pronúncias.
Mas você sabe o mais engraçado? É que esse êxito parece ter sido tudo, menos calculado. A dramaturgia quer muito que achemos Odete absurda e vil, mas arrancou as garras da personagem em sua releitura. Sim, ela é sarcástica, ela é desagradável, mas o que ela diz que nós não escutamos calados no dia a dia?
É óbvio que uma Odete que não brada as falas estrambólicas de 1988 vai ser naturalmente mais simpática. Quando foi a última vez que escutamos algo discriminatório dela, e não apenas antipático? O roteiro quer comer o bolo e o pau ao mesmo tempo, buscando uma Odete preconceituosa sem colocar falas preconceituosas na sua boca – e a suavização dos vilões atuais é um pouco duvidosa para mim, mas esse é um tópico para outra edição.
Isso tudo é muito irônico, considerando quão pouco sutil o roteiro da novela é. Tudo é mastigado ao extremo, mas quando se trata de Odete, temos que supor mil e uma coisas.
Então, a primeira lição que podemos aprender é a velha máxima: mostre, não conte. Em sua escrita, não seja como Vale Tudo que diz “olha só a desagradável Odete”, “Odete Roitman é a pior pessoa que você vai conhecer”. Mostre quem seu personagem é através das suas ações, e como outros personagens reagem a elas.
Mas eu adicionaria àquela velha frase: não tenha medo de mostrar. Pense em como a nova adaptação de A Pequena Sereia removeu a palestrinha da Úrsula mandando a Ariel ficar calada porque é um discurso… machista. Hum, bestie, ela é má, ela está está errada e está agindo de má-fé, épor isso que ela é uma vilã. Então, você quer que eu acredite que seu vilão é uma pessoa horrível? Então, venda bem essa ideia.
Foi há 37 anos, o feitiço caiu em mim… Agora, quando falo, tenho que cantar assim!
O que não ajuda, também, é a versão sem rumo de Afonso e Heleninha que encontramos aqui. O Afonso é mais desocupado que eu, que sou desempregado e tô fazendo uma análise acadêmica de novela na internet. A Heleninha é cronicamente frustrada – de novo, literalmente eu, mas eu não permiti a inspiração em mim. E isso não seria um problema se pudéssemos enxergar intenção por trás.
Se você é artista, seja qual for a sua área, você entende a importância da intencionalidade. Cada pincelada da pintora carrega um propósito, e mesmo se foi um acidente, é um acidente que não foi corrigido por um motivo. A escritora experiente não preenche o texto de verbetes sem propósito. Uma telenovela está em um espaço curioso, onde precisa pesar a mão em personagens e tramas para atender à demanda de capítulos de forma satisfatória. As melhores dramaturgias conseguem tirar leite de pedra com histórias interessantes, mesmo em sua extensão.
O pulo do gato, porém, é que Vale Tudo vem de outra era. A versão original completou 37 anos. E a nova versão, como toda adaptação, precisa repensar os elementos que funcionaram naquela época e não funcionariam hoje. Só que adaptar algo não é colocar celulares nas mãos dos personagens e colocá-los pra falar “tudo skibidi?”. A adaptação bem-sucedida vai além do superficial.
Ok que a Marvel não é exemplo de nada hoje em dia, mas acompanha o meu pensamento: Steve Rogers, o Capitão América, esmurrava nazistas em seu primeiro gibi de 1940. Ele nasceu como um retrato do patriotismo estadunidense e da luta contra poderes totalitaristas, e a Segunda Guerra faz parte da essência do personagem. A solução encontrada pela adaptação cinematográfica de 2011, passados 70 anos, foi congelá-lo até a era atual – algo que também foi importado dos quadrinhos, mas que funcionou ainda melhor no contexto dos filmes. Desse modo, Steve não apenas conseguiu manter sua origem, sua personalidade e seus momentos formativos, como também ganhou dinâmicas divertidas com o mundo moderno.
Mas não parou por aí. Durante a progressão da sua trama nos filmes, Steve encara os crimes e desmazelos do governo americano, o governo que o deu seus poderes e que ele se comprometeu a obedecer. Ele se desilude e repensa seu propósito. E o que é tão bom nisso? É que os roteiristas foram além de perguntar “quem é Steve Rogers?”. Eles também questionaram “o que ele representa na era moderna?”, “o que ele defenderia atualmente?”... Em outras palavras: quem é o Capitão Ameŕica de hoje?
E é aí que Vale Tudo peca. O que significa ser nepobaby em 2025, como Afonso e Helena são? O que significa ser uma pessoa pobre tentando empreender no Brasil atual, como a Raquel? Em um mundo de CEOs tresloucados como Musk e Bezos, quem seria Odete Roitman? Essas são reflexões que não parecem ter acontecido na sala de roteiro. E essa atualização impensada, sem se comprometer a recontextualizar a trama e os personagens para a nova era em que eles se encontram, esvazia o roteiro da sua profundidade.
A segunda lição é: se está adaptando algo, pense em como o novo contexto que você está dando à obra vai afetá-la. Isso vale para quando você adapta uma história antiga para uma época diferente, mas também para quando você traduz algo de um formato para o outro.
Você está adaptando sua peça de teatro para o audiovisual? O melhor que você pode fazer é se perguntar: como eu posso aproveitar esse novo formato ao máximo para contar a minha história? O que eu posso fazer agora que o formato anterior não me permitia? Phoebe Waller-Bridge se perguntou a mesma coisa ao levar seu monólogo dos palcos às telas, e Fleabag se tornou um dos maiores fenômenos culturais atuais.
Se você me perguntar qual foi a grande sacada de Phoebe com a sua adaptação, eu diria que foi reinterpretar a quebra da quarta-parede. No teatro, a personagem fala com a plateia, como todo ator faz em um monólogo. Na série, a câmera somos nós, e cada quebra traz Fleabag tentando provar algo para o público, nos convencer de algo, ganhar nossa validação. E essa pequena adaptação é o pilar de todo o arco narrativo da personagem.
How do you do, fellow kids?
O que mais esvazia o roteiro pra mim, sem dúvidas, é que todos os personagens de Vale Tudo têm a mesma voz. Os vícios de fala, a linguagem dos personagens – tudo grita "Manuela Dias".
Sim, ela é a autora. E que fique registrado, eu a acho uma autora muito competente. Mas existe uma diferença entre fazer seu personagem falar e falar pelo seu personagem. Quando eu escuto Odete, Heleninha e Fátima falando "horror total" no mesmo tom como se frequentassem os mesmos círculos, ou Afonso e Aldeíde em contextos completamente distintos falando "arrasou" tal qual mutuals do Xwitter, eu percebo a voz da autora ali.
Se fosse só isso… Eu passei um paninho para a Solange falando “eu sou resistência” como um tweet velho da Clarice Falcão, mas quando eu escutei os personagens falando “é verdade esse bilhete” um atrás do outro… Essa doeu, não só pela descaracterização, mas porque o meme já tem 7 anos e eu tenho certeza que colocaram pensando “o Twitter vai amar essa, hehehe”...
Eu peço licença para usar a Marvel como exemplo mais uma vez. Sabe como todo personagem dos filmes da Marvel parece ter o mesmo exato humor? E por vezes, quase sempre, soltam piadas que nem fazem sentido pro contexto? Então, é tipo isso.
A terceira lição é: use a linguagem a seu favor na construção do seu mundo e dos seus personagens. A linguagem é um fenômeno paradoxal, porque nós sempre usamos ela, mas quase nunca pensamos sobre ela no dia-a-dia. E quando finalmente pensamos, dá tanto pano pra manga que existe um nome apropriado pra isso: metalinguagem, quando usamos a linguagem pra falar dela mesma. Quem diria que “meta” não é só quando o Tony Stark faz piada com o universo Marvel, né?
Seja em prosa ou roteiro, a linguagem comunica tudo em uma obra. Se os seus personagens têm convívios drasticamente diferentes, vêm de contextos diferentes, será que eles falariam da mesma forma? Usariam as mesmas expressões, nas mesmas situações e no mesmo tom? Isso vale até mesmo para quem tem o mesmo convívio. Afinal, você não fala exatamente igual à sua mãe. Mas você, provavelmente, tem vícios de linguagem que herdou dela e usa em contextos que ela usaria, mas também em usos que ela nunca nem consideraria, porque vocês são pessoas diferentes.
Se assegure que a linguagem que você usa seja proposital. E se assegure que as falas venham dos personagens, e não de você.
“Poxa, [insira nome do personagem], é uma pena que se fale tão pouco de [insira nome da pauta] aqui em [insira local onde a obra se passa], não é?”
As novelas são obras de acesso relativamente fácil e linguagem democrática, alcançando um grande número de casas brasileiras de diferentes realidades sociais, culturais e econômicas. E por isso, muitas vezes, novelas elas são responsáveis por educar e conscientizar a população geral sobre assuntos pouco falados.
Assistir a um personagem LGBTQ+ tão humano e carismático como o Félix trouxe a revelação para muitas pessoas de que, como os Mamonas sempre pregaram, gay também é gente. E o Ivan de A Força do Querer foi o primeiro contato de algumas casas brasileiras com uma pessoa trans, e um catalisador para entender mais sobre identidades transgênero. Além disso, como esquecer da influência que a novela Mulheres Apaixonadas teve na aprovação do Estatuto do Idoso no Brasil?
As pautas sociais andam de mãos dadas com a dramaturgia. Quem conhece o formato das telenovelas, sabe que o chamado “merchandising social” faz parte do seu DNA.
O erro de Vale Tudo é desconsiderar a parte "social", e apresentar apenas "merchandising". As pautas são apresentadas como um comercial, em falas quadradas e artificiais. Quando Laís e Cecília começam a citar por nome a "Lei 1234 de 1998, parágrafo 17" ou o Afonso começa um discurso sobre energia limpa como quem fala da lista de compras, a novela me perde.
A ironia é que muitos dos valores que a Manuela prega na novela são alinhados aos meus. E eu sempre quero ver esses temas sendo popularizados e conversados, nas telas e fora dela. Mas se essa execução me afasta, eu imagino como devem reagir as pessoas menos abertas a essas discussões.
Eu sinto que falta a sensibilidade de, por exemplo, uma Glória Perez ou um Walcyr Carrasco, que ensinaram ao Brasil sobre tantos temas difíceis sem tornar suas novelas em episódios de Telecurso.
A quarta lição: acredite no que você escreve, e escreva o que você acredita. Parafraseando Walcyr Carrasco, quando você acredita de verdade em uma história, em uma causa, ela transborda no seu texto de forma natural. Se o seu público não acreditar que você se importa com o que está escrevendo, eles não vão se importar também.
O que me leva ao próximo ponto...
SEIS leches? En esta economia?
A novela tem um ponto-cego fatal, que é a pobreza escrita pela pluma da elite.
Em Vale Tudo, nós assistimos Raquel acordar às 5 da manhã para fazer jornada tripla e ir dormir às 22 todos os dias. Nós também vimos Solange madrugar por três noites pra entregar um trabalho. E a Lucimar, além de lidar com ex-marido folgado, limpa três casas diferentes por dia. E quem tem burnout é o Renato?
Ok, eu entendo. O personagem é gostoso, digo, charmoso. E ele precisa de uma trama que justifique sua presença – afinal, você está ocupando a agenda do ator e gastando dinheiro da emissora, o bonito não pode ficar sem fazer nada. Mas não seria mais interessante trazer o tema pra realidade geral do trabalhador, que entra em burnout sem nunca ter ouvido essa palavra. A escolha mais adequada é o patrão rico?
Claro, aqui nós estamos falando de preferências. A minha preferência seria que a pauta fosse de outro personagem. Mas disso, podemos tirar nossa quinta lição. Escreva o que você conhece é outra máxima que eu conheço e concordo, mas quando você se propõe a escrever um elenco variado de personagens, onde há pessoas parecidas e diferentes de você, não caia na armadilha de escrever as tramas mais pungentes apenas para personagens próximos das suas vivências. Pesquise, se interesse e busque se conectar com seus personagens, por mais diferentes que eles sejam de você. Tenha boa-vontade, afinal, você é o porta-voz dos seus personagens.
Slow down, you crazy child
E falando em boa-vontade, queria trazer à tona a cena acima. Uma pérola em meio a ondas de sal. Marco Aurélio promete a Heleninha que não será um obstáculo na recuperação dela como pessoa e como mãe. A sensibilidade da atuação da Paolla Oliveira como Heleninha e o lado afetuoso que Alexandre Nero traz para Marco Aurélio nos mostram que, um dia, esses dois "arquétipos" foram pessoas, e pessoas que se amavam.
Mas a minha pergunta é: por que agora? Desde a sua primeira aparição, o Marco Aurélio tem mostrado todos os tipos de ruindade e nada além – muitas vezes, sendo até mais ultrajante do que a Odete! Esse momento, apesar de apresentar um lado surpreendente e bem-vindo do personagem, poderia ser melhor utilizado se houvesse algum precedente.
O Marco Aurélio sofreu um problema de pressão, poucos capítulos antes desse. Um problema que aconteceu e passou despercebido de tão solto que ficou. Por que não mostrar que esse susto abalou o personagem e fez ele ter esse lapso de bondade? O texto da novela é ágil, e isto é um ponto bom! Significa que o ritmo foi repensado pra nova geração de espectadores, que pode não receber tão bem os momentos mais longos e densos de novelas mais antigas, significa que houve intenção por trás (callback!). Mas tanta rapidez também pede cuidado para não afogar tramas que se beneficiariam de espaço pra respirar.
Eu acho admirável o compromisso que a autora parece ter em humanizar seus personagens, até mesmo os vilões. Eu gosto disso porque mostra que gente ruim ainda é gente. Com nuances, com vontades, até mesmo com gentilezas. Mas quando a execução é inconstante, por vezes, isso sacrifica o impacto dessa humanização.
A sexta lição é: deixe a sua história respirar! Cada obra tem seu ritmo próprio, não existe uma fórmula que funcione para todos os textos. Então, o ritmo da história está nas suas mãos. Mas o mais importante é que, se você quer que uma cena ou uma personagem tenha impacto, você deixe ela ter o seu momento dentro desse ritmo.
Na verdade, isso é sobre Epic – The Musical
Você deve ter percebido que eu pouco falei da Raquel até agora. Mas, na verdade, eu falei mais da Raquel do que a novela.
Em meio a tantos núcleos e personagens distintos, Raquel tem estado perdida e não aparece muito se não for para dar suporte aos outros personagens. Mas talvez surpreenda você saber que eu não vejo isso como ponto ruim. Raquel sobrevive pelo poder da performance de Taís, que entrega uma das persongens mais vivas e vividas da novela, e esse respiro dá espaço pra outras tramas crescerem enquanto não chegamos no ápice tão esperado da história dela.
A sétima lição (que Vale Tudo soube aplicar muito bem!), é simples: deixe seu personagem respirar também!
Eu vou usar Epic – The Musical como exemplo – e vocês já sabem quem eu sou, então, não podem reclamar por eu enfiar musical no rolê! Uma grande crítica que eu tenho à obra é como o Odisseu é usado à exaustão. Ele é o protagonista da história, de fato, mas ouvir Odisseu continuamente por 2 horas e 30 minutos acaba enfraquecendo o arco do personagem. Por quê? Porque um personagem nunca é definido só por ele mesmo. Ele é definido pelos outros personagens que interagem com ele, e como eles reagem às suas ações (callback!). E a história é definida por essas relações. Mesmo que você esteja escrevendo um monólogo, perceba que o seu protagonista ainda vai falar sobre como foi a interação dele com uma pessoa fora da cena, como essa pessoa foi impactada pelas atitudes dele e como ela respondeu a isso.
Toda história é uma troca entre personagens. E é importante saber quando deixar um personagem descansar.
A desconsideração total de Epic por transições de cena também é um pouco duvidosa para mim, mas esse é um tópico para outra edição.
A material girl de ontem é a brat de hoje
Por fim, quero celebrar a atualização que mais deu certo, na minha opinião. A nova Maria de Fátima pode ser o completo oposto da versão original, interpretada por Glória Pires, mas esse é seu maior triunfo. A nova Fátima é debochada, charmosa, trazendo esquemas que beiram a sociopatia, mas não invalidam o carisma da personagem. Fátima se diverte em sua maldade, e isso acaba divertindo o público também.
Maria de Fátima é o retrato perfeito da geração atual, pois mesmo sendo moralmente dúbia, ela vocaliza as frustrações dos jovens em relação a uma economia e um mercado de trabalho falidos, onde o básico ainda é um luxo e viver é reservado para os ricos, restando para os pobres apenas sobreviver. Ela também representa o cinismo de uma geração que, todos os dias, vê outro rico mau-caráter saindo impune porque "soube jogar o jogo", e aprende que honestidade não é a qualidade mais valorizada no jogo da vida. E, ao mesmo tempo, ela também mostra os perigos e a crueldade de quem encara a vida apenas com ambição e escárnio e paga sua entrada para o parquinho dos privilegiados às custas da própria moral.
A crítica que Maria de Fátima representa é atemporal, mas reconhecer que essa crítica se materializa em formas e arquétipos distintos a depender do contexto e da época foi a grande sacada ao atualizar a personagem. Sim, nossa Maria de Fátima é brat.
Quem duvidou de Bella Campos está ganhando uma grata surpresa com a performance da atriz, aquela que trouxe mais preocupações se tornou um dos maiores acertos da novela. Eu diria, inclusive, que Odete e Fátima sustentam essa novela atualmente. Se Odete é fria e calculista, Fátima é acalorada e imprevisível. O contraste entre as duas vilãs funciona bem e promete gerar situações ótimas de acompanhar.
O sucesso de Fátima me remete a uma reflexão mais geral sobre o grande sucesso de personagens de má-índole. As vilãs conquistam o público porque vivem indiscriminadamente. Elas dão voz às suas frustrações de uma forma que nós não podemos, por conta do trato social. Elas têm passe para explodir por bons motivos ou por motivo nenhum, podem exercer vingança e falar o que ninguém fala. Por mais que tenham atitudes reprováveis que nós abominamos, o desprezo pelas amarras sociais chega a ser catártico para o público.
O psicanalista André Alves justifica que “há um pouco de “fetiche do pior”: nos mostram do que somos capazes como seres humanos. Quando são mais caricatos, sustentam um tipo de anteparo: “esse é o limite, eu não seria tão terrível assim.” É uma espécie de segurança moral”.
No caso da Fátima, eu sinto que isso é ampliado porque reflete preocupações socioeconômicas latentes da nova geração: um "ressentimento" da pobreza, das escalas de trabalho, do transporte público, do conformismo. Isso acaba tornando ela uma vilã que realmente incorpora o público, porque ela é o público.
Ok, muitas palavras bonitas, mas aonde eu quero chegar? À nossa oitava e última lição: seu vilão pode ser o seu maior trunfo, então, se dedique tanto à criação dele como você se dedicou ao seu protagonista. O antagonista costuma ter o papel mais importante da história. Ele é responsável por criar obstáculos no caminho do protagonista, ele empurra a trama pra frente. Se você tem um antagonista que faz seu público se sentir indiferente, sua história morreu na praia.
Uma frase que você deve ter escutado muito é que “vilões agem, heróis reagem”. Mas, SURPRESA, é aqui que entra a nossa VERDADEIRA última lição. Por essa você não esperava, né? A nona lição é: brother, sua história não precisa ser maniqueísta e seu protagonista não precisa ser um tapado!
Você me ouviu falar sobre humanizar vilões. Você me ouviu falar sobre permitir vilões serem cuzões. Você já me ouviu falar sobre criar vilões instigantes… E por que o mesmo não valeria pra protagonistas?
Pra começo de conversa, sua obra pode ser protagonizada por um vilão, onde o antagonista é o verdadeiro herói, o paragão moral da história. Mas não acaba por aí: mesmo que seu protagonista seja bonzinho e cuti-cuti, ele não precisa ser apenas isso.
Se vilões podem ter momentos gentis, heróis podem ter momentos sombrios. Permita que seu mocinho erre, que ele se sinta justificado em seus erros, que aprenda com eles, ou não. Permita que seu protagonista movimente a história e não fique sempre esperando, passivo, pelas ações do antagonista. Mesmo que ele seja o passivo da sua fanfic secreta de smut AU ABO enemies-to-lovers (e outras palavras que não estão na Bíblia). Faça do seu protagonista um ator, não apenas um reator.
Esse foi o Picolé de Chuchu de hoje! Agradecemos por ler até aqui! Se gostou, não esqueça de se inscrever na newsletter e nos seguir no Instagram e no Xwitter em @picoldechuchu. Deixe suas opiniões nos comentários – talvez, até renda pauta para uma nova edição! Até a próxima! ❤️